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“Aqui também moram crianças”

      Eu moro aqui na Luz desde 1994. Saí do Ceará para trabalhar como camareira e entrei aqui quando ainda era um hotel. Quando o dono foi para Portugal, deixou as contas em meu nome e fiquei cuidando dele sozinha. Em 2003 eu o transformei em uma pensão e, desde então, todo dia tenho que estar aqui, sempre tem alguma coisa para resolver. Aqui tem um monte de gente morando, um monte de crianças. A maioria dos lugares aqui não aceita crianças, mas criança também é gente!

      Eu não tenho nada contra morar aqui, conheço todo mundo. Nesses anos todos que estou morando aqui, já deixaram algumas crianças na minha porta. A primeira foi no tapete. A menina tinha acabado de nascer, ainda estava com o cordão umbilical. Eu não estava aqui, mas me ligaram e falei para chamarem uma viatura. Como não chamaram, na manhã seguinte, comprei roupa para ela, dei um banho, comprei uma mamadeira, uma chupeta e entreguei a menina na delegacia. Eles falaram que demoraria uma semana para resolver toda a burocracia. Falei que não tinha tempo para esperar tudo isso, foi quando me colocaram na viatura e rodamos para tudo quanto é lugar: no Hospital das Clínicas, no IML, no conselho tutelar. Não resolveu nada. Então, eu pensei bem e decidi pedir a guarda dela. Quando voltei ao conselho tutelar, a assistente social me disse que um casal de fora do país a tinha adotado. A menina era uma graça.

      Passou uns 3 meses, apareceu uma caixa de papelão se mexendo e um lençol por cima. Fui me abaixando e logo um bebê começou a chorar. Quando vi era um menino, a coisa mais fofa. Esse eu acabei deixando com os policiais.

      Depois apareceu a mãe dessa menina que eu crio. Ela estava grávida e dizia: “não estou interessada em ter essa menina não”. Minha mãe sempre me falou para eu criar uma menina, e já tinha passado duas crianças na minha porta. A mulher estava passando fome, grávida, sem ter nada, nem para fazer um exame. Então, eu disse: “é o seguinte: você passa a morar aqui dentro, vou te comprar roupa e te dar o que comer, você vai fazer o pré-natal”. Mas, todo dia ela me perguntava: “você não desistiu não, né? . Eu dizia “não” e ainda perguntava para ela: “e se for menina, vai mudar alguma coisa?”. Ela já sabia que era menina, mas insistia que não queria a criança. Disse a ela que a menina não ia puxar nada dela, que ia se parecer comigo. Eu já tentei conversar com minha filha para falar quem é a mãe dela, mas ela não aceita. Ela é minha companheira e não me arrependo de jeito nenhum de a estar criando. Somos eu e ela.

      Sempre acontece alguma coisa por aqui. Tinha uma moça que morou aqui há dois anos atrás, era casada e tinha quatro filhos. Ela se envolveu com o crack, foi no meio do fluxo. Acabou perdendo os quatro filhos e nós, aqui da pensão, alimentamos os quatro. Entramos em contato com a família, pedindo para vir buscar as crianças, mas ninguém apareceu. O conselho tutelar levou todos para um abrigo na República. Depois de muito tempo, a família apareceu e eles ainda estavam lá, agora quem cuida são eles. A mãe desses quatro até hoje está aqui, magra, magra, magra. Ás vezes eu passo por ela, ela abaixa a cabeça, acho que por vergonha. O marido dela sumiu.

       Nesses anos todos, eu nunca me envolvi em confusão, nem tive curiosidade de provar uma coisa dessas. Na minha pensão eu não alugo diária, se não vai vir muita gente com cachimbo e pedrinha.

      Agora tem toda essa questão em relação a reestruturação da Luz e nós, que moramos aqui, temos pouca informação sobre o que vai acontecer. Esse prédio aqui é patrimônio histórico, mas eu não sei o que eles querem fazer, porque aqui não está à venda, não podem mexer em patrimônio histórico. O povo está perguntando se vai receber apartamento, nós não sabemos nada disso. Eles começaram a tirar o pessoal da outra quadra, e já vão começar a derrubar para fazer um hospital ali. Aqui não precisa de hospital, o que precisa é dar uma organizada, deixar o pessoal cuidar e tratar as pessoas que estão aqui.

Dentro do fluxo tem muita gente boa, tem muitas mães sofrendo pelos filhos, tem padre, tem advogado, tem tudo. O povo daqui é de fora, é da Bahia, do Ceará, de Pernambuco. Eles bem sabem que não podem roubar no pedaço, mas um dia fui assaltada na esquina da Rua Helvetia com a Avenida Rio Branco. Eles tomaram minha bolsa e correram para cá. A galera viu e começou a gritar: “roubaram a tia da pensão”.

      Eles respeitam muito as pessoas que moram aqui. Eu passo no meio do fluxo com minha filha e eles não mexem com a gente. Se alguém estiver fumando enquanto nós estivermos passando, alguém já fala: “respeita a tia aqui que ela está descendo com um anjo”. Só tenho medo quando eles se revoltam com a polícia, mas o problema não são eles, o problema é a limpeza. Os caminhões da prefeitura começam a limpar e lavam tudo. Às vezes eles se rebelam e partem para cima. A polícia não pode machucá-los porque senão os direitos humanos vão cair em cima.

      Antigamente até que era bom. Há uns doze anos atrás tinha um shopping aqui, cheio de segurança. O resto era bar e hotel, até que eles derrubaram o shopping e isso aqui piorou. A primeira vez que a polícia veio, entrou em todas as pensões. Quando cheguei aqui no outro dia, o pessoal estava numa revolta comigo. Achei bom revistarem todo mundo do mesmo jeito, porque eles viram que na minha pensão só tem família. Quem não deve não teme.

      A gente sempre procura saber a procedência dos moradores. Uma vez, uma senhora que morava aqui desde 1999 sumiu. Fui procurá-la e a encontrei na Santa Casa, ela tinha tido um AVC. Iam mandá-la para um internato se não achassem a família, eu não deixei. Virei o mundo para entrar em contato com a família que morava em Minas Gerais. A família ainda reclamou, falou que não a viam há mais de quarenta anos. Eu falei: “engraçado, eu encontrei vocês em quarenta dias”.

      Dessas investigações já fiz muito! Achei família na Argentina, no inferno do mundo. Você acha que não vou achar a família? E aquele que não tem família, que vem lá do Norte porque fez alguma palhaçada lá, e chega aqui e não quer dar documento, não quer dizer de onde veio, vem todo cheio de segredo?!? A gente puxa uma ficha, descobre as coisas e cuida deles de alguma maneira. Eu sempre cuido. Outro dia perguntei para o pessoal do comércio aqui do lado: “como você não sente falta do cliente que some ou desaparece?”. Isso não acontece comigo não, eu fico de olho, fico cuidando.

“Se demolir, vai acabar com um pedaço da história”

      No dia 29 de outubro de 2009, desci no Tietê e não sabia para que lado ir. Um moço me disse que eu tinha que pegar um ônibus para a Praça da República. Peguei e desci lá. E agora? Vou para onde daqui? Aí vi um senhor: “Moço, pelo amor de deus! Onde é que tem um hotel aqui que eu possa pagar? Mas é pouco, porque eu não tenho muito dinheiro”.

      Foi assim que cheguei neste endereço. Quando entrei aqui, não tinha dinheiro para comer, mas eu conheci uma gaúcha que abriu as portas de São Paulo para mim. Ela me pegava pela mão e me levava para todos os lados: no CRAS e Poupa Tempo, para tirar documentos; no Mercadão, para comprar verduras; no AMA, para cuidar da saúde, no Bom Prato, que era aqui perto.

      Um dia eu fiz um frango com quiabo para ela e, quando ela experimentou, decidiu abrir outras portas para mim. Ela falou com o dono da pensão e perguntou se eu podia cozinhar e vender marmitas. Ele respondeu: “Pode! Manda ela fazer uma comida aí pra gente ver como é que é”. Lembro que fiz um tropeiro e ele ficou doido, sabe? Falou que eu poderia cozinhar no quarto. E assim eu comecei vendendo 3 marmitas, no outro dia eu vendi 8, depois já era 10. Falei para o meu filho: "Manda dinheiro que eu vou comprar um fogão usado". Fui aqui mesmo na rua e comprei, porque aqui não tem lugar melhor pra você comprar de tudo. Comprei o fogão, umas panelinhas usadas e fui montando minha cozinha. Em dezembro, eu já estava vendendo 20 marmitas e o povo já estava sabendo que aqui tinha uma mineira que fazia comida.

      A vida aqui é muito difícil, mas ao mesmo tempo é onde você tem acesso às coisas, tudo que eu tenho sai daqui. Aqui não é “sou eu”! Aqui é “todo mundo”. As pessoas generalizam tudo, acham que a Cracolândia só tem traficante e noiado. Tem gente que passa aqui e fecha os vidros do carro, vê a gente e quase passa por cima. Aqui tem gente que trabalha, que não usa drogas e, como eu, vive para ganhar o próprio dinheiro.

      Conheço essa região como a palma da minha mão. Eu não conheço São Paulo direito e, se eu não puder ficar aqui, eu vou ser mais uma moradora de rua. Se você ganha 960 reais, vai morar onde? Ou eu volto para minha terra, ou então eu fico aqui e fico na rua. Por isso, acho muito válido lutar por esse lugar, porque, por incrível que pareça, eu gosto e me sinto bem aqui.

Tudo que eu mais queria era ter um apartamentinho para eu montar a minha cozinha pequenininha - que eu não sou ambiciosa, não quero coisa muito grande - e quero viver com dignidade, mas infelizmente aqui não tem como, né?  Se você mora aqui, você convive com todo tipo de doença que pode imaginar. Sempre que eu vou usar o banheiro, levo um balde com água sanitária e sabonete, porque a gente é mulher e gosta de viver em lugar limpo.

      Eu custo muito a acreditar que isso aqui pode acabar, porque tem muitas pessoas envolvidas nisso tudo: a Cracolândia, o governo e a polícia! Isso é muito imbróglio, entendeu? De vez em quando a polícia chega, manda você sair e você fica lá fora igual gado, depois volta pra dentro de novo. E assim a gente vive: igual uma boiada.

      Eu moro na Cracolândia, mas eu não sou burra, eu tô por dentro das coisas. Eu pago aluguel e, se vão demolir tudo, eu não vou poder ficar com nada, nem me estruturar de novo. Para onde a gente vai? Como que a gente vai fazer para gente poder sobreviver? É muito ruim viver assim! Empata a vida e você não sabe o que fazer.

     Eu também acho uma pena eles demolirem estes casarões, porque aqui tem muitas histórias que aconteceram antes da região ser assim. Andando por essas quadras, a gente ainda encontra alguns ferrolhos que devia ser de escravo, da época do engenho. O bairro ainda tem essas características, é só ver os casarões que se encontram por aqui. Então, por que demolir? Por que não reestruturar, arrumar, fazer um museu, né? Tantas coisas poderiam ser feitas para restaurar o lugar.

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