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“Uma vida inteira no centro”

      Minha vida inteira está aqui no centro de São Paulo. Morei só uns dois anos na Bahia, mas depois que voltei para cá, não saí mais. Moro em uma ocupação. Estou aqui desde quando tinha a antiga rodoviária, quando era um lugar melhor e a gente podia andar e passear, viver com mais segurança. Todos os meus filhos nasceram aqui, são nove, cinco meus e os outros quatro que eu resgatei do fluxo.

      Aqui nos Campos Elísios eu moro desde 2001. Para sobreviver aqui no centro tem que ser pelo comércio, não tem outro jeito. E, querendo ou não, a gente não consegue fazer isso de forma legal, porque a prefeitura nunca nos dá o alvará. Eles pedem um monte de coisas e quando a gente leva, sempre está faltando um detalhe e sempre acaba fechando um ou outro comércio. É praticamente impossível! Por causa disso, resolvi trabalhar dentro do fluxo, vou com meu isopor pela rua vendendo marmitas, refrigerantes, água e sobremesa. Fiquei fazendo isso por três anos, mas por causa da violência eu resolvi parar. Uma vez um policial deu com o cassetete na cabeça da minha filha, ela desmaiou na hora e levaram ela para o hospital. Uma outra, tinha uma barreira policial antes da entrada do fluxo, eles começaram a abrir todas as marmitas e reviraram tudo, como se fosse um presídio. Foi um grande prejuízo porque ninguém ia comprar marmita revirada. Aqui todo dia tem algum tipo de violência. Às vezes você tem seu direito de ir e vir brecado, não tem nem o direito de entrar na sua casa. Se estiver na hora do rapa, eu preciso dar a volta no quarteirão para tentar entrar em casa, isso é um absurdo. Eles não querem saber se você é usuário, se você é morador, se você é do crime, é tratado da mesma forma, sem respeito. Ficamos entre a cruz e a espada, não tem saída.

      Eu trabalho com comida, mas quando a venda das marmitas não dá conta, eu vou até o Brás e compro lingerie para revender aqui. Se eu fosse trabalhar registrada, com a quantidade de filhos que eu tenho, mais as outras despesas, não daria. Eu sempre dou um jeito de ter o meu ganha pão. Uma vez me entrevistaram para uma reportagem e me perguntaram de onde os usuários tiravam o dinheiro para comprar marmita. Vinha do projeto que oferecia uma bolsa aluguel e trabalho. Eles trabalhavam na varrição e toda sexta-feira tiravam o dinheirinho deles. A maioria dos meus clientes era usuário, eles comiam e todo final de semana iam acertar comigo. Para mim não tem motivos para tratar ninguém de maneira diferente, não quero saber se ele está sujo, se ele é usuário, quero saber se ele é livre, se está se alimentando, como faz todo ser humano.

      Quem mora aqui, sempre conhece todo mundo. Eu conheço! Depois que o fluxo veio para esse bairro nossa vida é com ele. Sabemos as manias dos usuários, quando estão com fome, quando estão na abstinência, quando querem fumar. Parando para perguntar você vai ver que a maioria fez faculdade, tem professores, juízes, advogados, mas infelizmente aconteceu um ato de fraqueza e eles vieram para cá. A gente nunca sabe o que aconteceu na vida de uma pessoa, com a família dela. Infelizmente, algumas pessoas não se mantêm firmes em um momento ruim, deslizam e vêm parar aqui. Eles também são moradores do bairro, também tem seus direitos e se preocupam com o que vai acontecer com eles.

      Estão falando agora de tirar a gente daqui. Vai ter algum mandato para isso, inclusive alteraram a data. Meus filhos postiços do fluxo vieram me perguntar: “oh mãe, como vai acontecer? Como eles vão tirar a gente daqui? Os policiais falaram que no dia da reintegração vão montar praça e cercar tudo aqui, falaram para a gente ir procurar outro lugar”. A gente não sabe dar uma resposta para isso, não sabe o que falar, pois mal sabemos como vai ser conosco. Na ocupação, por exemplo, tem muitas mães que têm crianças em creches da região. Estão oferecendo um auxílio de quatrocentos reais para cada mãe resolver sua situação. Imagine você alugar um lugar aqui no centro com quatrocentos reais e ainda pagar as contas! Cada mãe naquela quadra tem seus direitos.

      Em 2013 teve um termo do CDHU para desativar esse quarteirão, e desde lá já tinha essa promessa e essa enrolação toda. Onde estão construindo o shopping, por exemplo, falaram que ia ser moradia para o pessoal daqui. Faz cinco anos que as famílias estão aguardando. É nesse momento que você descobre que as pessoas de baixa renda não têm o direito de morar no centro, eles estão querendo na realidade tirar todo mundo daqui. Nós vamos esperar até quando para sermos atendidos?

      O máximo que aconteceu foi um sorteio quando estavam começando a construir aquele prédio, e pelo que sei poucos foram sorteados. Quem tinha restrição no nome perdia a chance. Mas, aí você se pergunta: através de um sorteio? Se é assim, o que a gente pode esperar do governo? Esperar o quê do Estado hoje em dia? A mesma promessa de cinco anos atrás é a mesma de agora, sem nenhuma segurança, sem nenhuma garantia. Eles já deram uma data próxima para tirar todo mundo daqui, não dá nem tempo de montar um conselho para defender as famílias. A maioria aqui é como eu, com pouco estudo, analfabeto. Eu estudei até o segundo ano, mesmo assim aprendi a defender meus direitos.

      Agora, vem o CDHU oferecendo a verba. Eles mudaram o dia da reintegração, por qual motivo eles querem acelerar tanto? Qual a pressa? Eles querem construir o hospital aqui, mas porque não acelerar em melhorar o atendimento da Santa Casa? Conhecidos meus foram lá e não tinha nem o equipamento básico para fazer o atendimento. Eles falam que investem um tanto aqui, um tanto ali, por que não investem onde já é uma prioridade, onde esperam pela medicação, onde tem paciente sem atendimento? Mesmo sem estudos nós conseguimos ver a falha, vemos a injustiça do mundo hoje. Tudo é na hora e no momento que eles querem. Por que investir apenas no centro? Imagine essa quantidade de dinheiro, indo para um lugar que já está construído e precisa dele.

      Com toda essa situação, as pessoas do fluxo vão ficar espalhadas por aí. Já tentaram mudar isso, quiseram internar a força. Imagine você ser internado à força por alguém! Seria um absurdo! O pessoal dos Direitos Humanos foi para cima e isso não aconteceu. Isso gera preocupação, porque no fim das contas, o Estado, o governo, a polícia acabam criando um problema para toda a população, porque conforme são violentos com quem está no fluxo, as pessoas revidam quebrando os carros, furtando pedestre. Essa é a maneira deles pedirem atenção, até mesmo de se ajudarem. No fim, os moradores daqui acabam pagando pelo erro do governo, do Estado. Acontece muito de um policial pegar o cachimbo de um usuário, aí o usuário vai assaltar um pedestre para comprar outro cachimbo.

      Como eu falei, minha vida inteira foi aqui no centro. Não me imagino fora daqui. Se eu fosse para outro lugar ia ficar perdida. Eu consigo me manter aqui. Apesar de ganhar pouco, eu gasto pouco, mesmo com a quantidade de filhos que eu tenho. Mesmo construindo prédios, novas moradias, a gente podia continuar aqui, indo para esses apartamentos. Tem alguns quase prontos, mas vazios. Por que não dá um para cada mãe de família? Elas ficariam satisfeitas! Se eles não derem vão aparecer outros cortiços, outras ocupações. E se precisar, até eu ocupo. É uma maneira de mostrar para o governo que precisamos dessas casas. Porque no fim eles estão nos tirando daqui e vamos para condições piores, isso não está sendo feito de forma digna.

Eu moro faz seis anos na ocupação onde estou hoje. Lá é minha casa, meu cantinho, mesmo sendo tudo amontoado, não cabe muita coisa, cabe uma cama de casal e um beliche. E sinceramente, se você tem um cantinho para comer, para dormir, ter saúde, já está ótimo, o mínimo para uma vida digna. Minha casa pode ser do jeito que for, mesmo chovendo mais dentro do que fora, é meu canto sagrado, junto com meus filhos.

“Coisas que a gente precisa na vida”

      Minha história, aqui na região, começou no galpão. Ali meu marido teve que trabalhar com qualquer coisa pra poder se virar. Ele era estrangeiro e ainda não tinha documentação arrumada; foi a maior burocracia para poder registrar minhas crianças. Ali a gente começou a vida juntos.

      Do quartinho pequeno, a gente conseguiu ir para um maior. Nesse quarto eu já tinha de tudo: guarda-roupa, cama de casal e a cama das crianças. O meu quarto era dividido com a cozinha e também tinha banheiro dentro do quarto. Assim dava para a gente viver melhor, e foi ali que engravidei da minha filha.

Meu marido me conheceu trabalhando na boate. Ficamos juntos até eu ter as crianças e me mudar para lá. Dali ele foi embora de casa, me abandonou com as crianças. Foi quando minha filha mais velha veio morar comigo. Tudo isso se passou dentro do galpão.

      Naquele galpão se dizia assim: “você tem amigos pra droga, mas na hora que você precisa de uma ajuda, você não tem amigos”. Não era bem assim. O dono sempre falava: “olha, você é jovem, sai dessa vida, isso não é pra você, você tem filhos".

Uma vez a polícia entrou dentro de casa e foram direto revirar nossas coisas. Outra vez, eles me confundiram com uma outra pessoa que morava do meu lado. A pessoa saiu de boa e eu fiquei no B.O. Um dia eu falei que não aguentava mais, foi quando começou a vir o pessoal da Igreja Universal. Os pastores viram minha situação e começaram a evangelizar, toda sexta-feira eles estavam lá. Mas, gente, um drogado vai dar atenção pra isso como? Tem que vir de nós. Se a gente não querer, não vai fazer efeito as tuas palavras.

     Depois eu me mudei do quarto grande porque não tinha mais condições de pagar o aluguel. Retornei para o outro quarto pequeno e a minha vida virou um inferno. Foi nessa época que me separei, meu marido me deixou grávida e se mandou pra rua. Eu, grávida, fiquei 4 dias virada. Quando eu não começava na quinta, para parar na segunda, eu começava na sexta e parava na terça. O tempo que eu conseguia ficar acordada usando a droga e bebendo, eu ficava, o barrigão desse tamanho. Quando cheguei em casa, começaram as contrações. O vizinho do lado viu minha janela aberta e perguntou se eu estava me sentindo bem. "Eu não, tô sentindo dor na barriga". Foram atrás da minha filha e, quando mal a gente esperava, a bolsa estourou. Naquela época, a polícia não entrava aqui; no fluxo, era tudo fechado. Nem jornalistas entravam aqui. Correram para chamar o bombeiro, mas antes dele chegar, a minha filha nasceu dentro do galpão.

     A gente ficou naquele quartinho até chegar o momento do despejo, todo mundo tinha que sair. Mas, ir pra onde, com um monte de coisas, duas crianças…?  Eu não tinha condições de segurar um aluguel, até que veio o bolsa aluguel. Saí do galpão e fui para o predinho do lado. Lá foi o verdadeiro inferno, porque o dono do prédio começou a me humilhar. A gente pagava 500 reais nessa época, mas meu marido só me dava 200 para o aluguel. O proprietário vinha na porta, fazia aquele show, colocava cadeado, cortava a luz do prédio, deixava a gente sem nada. Entramos numa briga danada, não sabia que aquele prédio também estava em reintegração de posse. Depois da reintegração, fomos morar na pensão.

      Um dia, o pessoal da igreja me conheceu e viu que eu precisava de ajuda; vinham e faziam oração dentro da minha casa. Eu consegui sair da droga, mas paguei um preço muito grande por isso tudo. E recomecei como liderança na igreja que me ajudou, ajudando os usuários em um abrigo.

      Se pudesse conversar com a polícia, pediria para não ter mais agressões quando fazem essas ações. Dória, a gente tem que tentar conversar, sabe? Nós, moradores, também sofremos violência por parte desses policiais que ficam aí. Eu mesma fui abordada várias vezes, mas eles nunca conseguiram me revistar porque eu brigava, falava "não sou da sua laia", xingava mesmo.

      Sou muito influenciada por esse meio aqui: tem o pessoal da Craco, mas tem também o pessoal da Globo e da Record, que me conhecem por causa de uma reportagem. Sempre que acontecia alguma ação policial, eu ligava para eles. Quando o Dória disse que achou não sei quantos milhões de drogas, nós não vimos nada disso. Só vimos armas. Acordamos com a polícia batendo na nossa porta, revistando a gente, impedindo de ir para a rua. Foi uma coisa absurda, nós, moradores, não tivemos paz.

      Eu também vim de ocupação, minha mãe morou em uma delas. Foi ali que eu vi a luta da dona Nete, uma das lideranças da Prestes Maia. Eu me espelhei nela e tudo que eu sei hoje eu aprendi um pouco com ela: ter garra, brigar, olhar pra frente, mesmo você apanhando, sendo xingada, nunca desistir. O que eu puder estar fazendo pra ajudar o pessoal daqui, eu faço.

Aqui, as pessoas me respeitam muito. Às vezes, quando tem alguma audiência na Câmara, eles me chamam para contar um pouco da minha história, do que que acontece aqui e do que a polícia faz. Uma vez eu fui repreendida pela GCM, ele falou que ia me pegar e me matar. Só que eu não tenho medo. Sempre que a gente passa, eles perguntam: "mas quem é essa mulher?". Eu sou muito conhecida também por causa do cabelo, porque eu troco de cabelo, coloco umas cores loucas.

Isso é um pouco da minha história aqui na Luz. E assim eu vou vivendo feliz, ajudando o povo e lutando pra tirar minha filha do crack. Se mexeu com a minha filha está mexendo comigo, não só com ela, mas com as outras que eu crio também, com os outros filhos que eu tenho aí na Cracolândia, com as pessoas que eu tenho como meus irmãos. Eu vou lá, dou um abraço e já aparece aquele sorriso no rosto, porque a gente precisa de um abraço, não de uma palavra, mas um abraço.

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